Por CARVALHO, Ana Priscila R.
Outro dia, já em quarentena, o Fernando, meu filho de 4 anos, virou para mim, enquanto tomava banho, e disse: “Mamãe, sabe de uma coisa? Eu não gosto de trabalho”. Assim, de repente, sem que eu tivesse feito qualquer pergunta ou falado qualquer coisa relacionado ao trabalho. Mas, perfeitamente, são incontáveis as vezes em que ele me escuta dizer: espera um pouco, Nando, a mamãe precisa fazer uma coisa do trabalho aqui. Por isso, então, ele me explica que não gosta de trabalho – assim mesmo, dessa forma genérica – porque eu estou sempre trabalhando e ele fica chateado com isso. Esse tem sido o cenário aqui em casa, uma rotina em que tento conciliar o trabalho – ou melhor, os trabalhos – e os cuidados e o tempo que a maternidade me exige. Tudo se agrava, porque vivo em uma situação extremamente instável. Tive meu contrato de trabalho enquanto professora de uma instituição suspenso, uma vez que me enquadrava como prestadora de serviço, com nenhuma garantia para um momento como esse. Atualmente, sobrevivo a partir de encomendas de serviços de produção de materiais em vídeo, de transcrição, entre outros e atuo também como militante de um movimento social que tem organizado uma rede de solidariedade que se mostra fundamental neste momento àqueles e àquelas que historicamente possuem seus direitos negados e negligenciados. Além disso, sou mestre em Antropologia e licencianda nas Ciências Sociais, o que significa que a minha vida acadêmica não pode estar paralisada – principalmente, se almejo, brevemente, ingressar em um doutorado e seguir as etapas acadêmicas da profissão – ou seja, que devo buscar, constantemente, estar inserida em grupos de pesquisa e discussões, bem como (tentar) produzir para deixar o tal do Lattes bonito e disputável. Não precisei de uma pandemia e a necessidade de uma quarentena para escrever sobre o que escrevo hoje. Não é novidade perceber como a maternidade atravessa meu campo profissional e, essencialmente, o meu lugar na vida acadêmica. Faz pouco mais de um ano que defendi minha dissertação de mestrado e os dois anos em que o fiz foram marcados por situações que só quem é mãe neste contexto poderia viver. Situações diversas, como, optar, por mais que não fosse o desejo, mudar o objeto de pesquisa, porque para tratar do objeto inicial seria preciso viajar para outro estado e, naquele momento, na medida entres os prós e contras, compreendi que aquela não seria a opção mais saudável para mim e para o meu filho. Ou fazer trabalho de campo carregando o filho junto e, alguns dias, ser um completo fracasso, mas também, outros dias em que a presença dele foi o que oportunizou situações que são centrais na minha pesquisa. Ser acompanhada, em todo o processo, por um profundo cansaço e uma eterna necessidade de dividir e negociar o meu tempo com os outros e comigo mesma. Sem falar na culpa, é claro, que carreguei: se estava com ele, me culpava por não estar produzindo e caminhando com a minha dissertação; se estava sem ele, culpada por estar longe, ausente. Além das situações clássicas em que estou no meio de uma reunião de orientação ou do grupo de pesquisa e me ligam da escola, dizendo que aconteceu um acidente ou que ele está doente e preciso correr para buscá-lo. Tenho consciência de que todo meu trabalho do mestrado – o texto final pode ser um reflexo disso – tem as marcas das minhas condições enquanto mãe, principalmente, porque quando iniciei o curso de mestrado meu filho não havia completado nem dois anos de idade e a carga de trabalho mental era e continua sendo extensa. Mas é certo, também, que a pandemia e a necessidade da quarentena, viera aprofundar os já conhecidos dilemas – você sabia que quarentena é o nome que se dá para o período pós parto em que a mulher, teoricamente, precisa se “recuperar” do parto e voltar toda sua atenção para o bebê recém-nascido? – para nós mães que fazemos parte da vida acadêmica e para as que não fazem, bem como, trazer outros novos, provocando a necessidade de nos reinventarmos neste contexto totalmente inédito e que produz um oceano de inseguranças e perguntas sem respostas. Contudo, tudo isto não é sem razão ou fruto do acaso. Basta olharmos para os dados da nossa realidade e compreenderemos que o desemprego atinge mais as mulheres e, mais profundamente, as mulheres que são mães. Quando encontram emprego, seu salário, em média, representa ¼ do salário das mulheres que não são mães, gerando grande desigualdade entre estes dois grupos e que não se apresenta na mesma proporção quando olhamos para os homens que não são pais e os que o são¹. O campo acadêmico tem as suas particularidades em relação a outros campos de trabalho e profissões, contudo, a desigualdade de gênero é uma realidade em todos eles e aquele não foge à regra. A ideia de que as mães são as principais e/ou exclusivas responsáveis pelos cuidados com os filhos e com a casa ainda não se tornou passado quando olhamos para os dados, apesar dos avanços conquistados através da organização política das mulheres ao longo da história. A realidade é que nós estamos vivenciando uma sobrecarga com os papéis que devemos e desejamos cumprir, sendo mães, trabalhadoras e responsáveis pela vida doméstica. Ainda somos socialmente enclausuradas, a partir de mecanismos materiais, objetivos, mas sobretudo, subjetivos e mentais, no trabalho do cuidado em todas as esferas que ocupamos e atuamos. O sistema patriarcal, dessa forma, continua vivo e a gerar desigualdades de gênero que, quando interseccionadas com as desigualdades raciais e de classe, mostram-se ainda mais urgentes de serem superadas. Essa desigualdade no campo acadêmico se evidencia quando olhamos para o gênero de quem tem conseguido manter a produção científica neste momento, principalmente, no que tange as publicações, principal mecanismo de desenvolvimento profissional na nossa área. Variados são os artigos e dados que temos tido contato nessas últimas semanas que buscam demonstrar o aprofundamento, o escancaramento das contradições em torno do lugar da mulher nesta esfera em meio a pandemia. Os esforços de diferentes periódicos têm demonstrado que a queda na produção tem atingido as mulheres no geral. Contudo, é necessário fazer uma investigação em cada um deles acerca do recorte da maternidade, como o projeto “Parent in Science”² tem realizado neste contexto. Seus dados, produzidos a partir de questionários online, apontam para a realidade de que as mulheres e os homens que têm filhos são os grupos que mais enfrentam dificuldades em realizar o trabalho remotamente, tendo, ainda, uma grande desigualdade entre eles³. Dito isso, não significa que as mulheres que não têm filhos não vivenciem as dificuldades e os desafios frutos da desigualdade de gênero na ciência. O que se evidencia, prioritariamente, é que a maternidade é uma condição que, dentro da academia, nos coloca em ainda maior desvantagem, ainda mais agora que precisamos aprender, literalmente, a como digitar no computador enquanto alimentamos o filho. Ou amamenta, ou brinca de carrinho, ou, simplesmente, atende qualquer das necessidades emocionais normais que crianças possuem. Isso porque, aqui, não tenho a pretensão de me aprofundar nas questões que tangem à saúde mental das crianças (e das mães!) neste momento e como isso é mais uma coisa que, adivinha? Sobrecarrega nós, mães, principalmente. Por isso, gostaria de concluir este texto reafirmando que o caminho para a mudança neste cenário que se perpetua e se agrava – ainda mais, quando vemos que o número de mães solos só cresce e representa a realidade da maioria das mães das classes mais vulnerabilizadas em nosso país – não pode ser outro se não a construção e o fortalecimento de aparelhos estatais que estabeleçam políticas de cuidado e de desenvolvimento das crianças, partilhando e coletivizando estes cuidados. Essa coletivização não se restringe às ações estatais, mas deve ser praticada em cada esfera social comprometida com a inclusão das mulheres mães em espaços de decisão, participação e produção. Dessa maneira, a mudança também deve estar dentro da forma como, hoje, o sistema de produção científica se organiza e da lógica de produtividade que pauta nossos sistemas de avaliações4. Há ainda um longo caminho a ser percorrido em direção a um mundo mais justo e atento às desiguais condições que diferentes grupos possuem. Mas ainda há quem insista nos delírios que nos veem como “coitadistas” e de que a verdade é que usufruímos de privilégios. Vai entender. Notas: 1 - Dados do IBGE citados na matéria https://www.huffpostbrasil.com/entry/maes-mercado-trabalho_br_5cd5eff2e4b054da4e89773b 2 - “Ao longo destes três anos, apresentamos dezenas de seminários e palestras em diferentes cidades, levando para todo o Brasil a discussão sobre maternidade e carreira. Fomos pioneiras no levantamento de dados para avaliar, profundamente, as consequências da chegada dos filhos na carreira científica de mulheres e homens, em diferentes etapas da vida acadêmica. Nossas ações levaram a mudanças concretas no cenário científico brasileiro, trazendo a maternidade para o centro da discussão. Hoje, diferentes editais de financiamento consideram os períodos de licença-maternidade na análise de currículos! Um tremendo avanço, graças à mobilização do nosso grupo e seus apoiadores!” https://www.parentinscience.com/sobre-o-parent-in-science 3 - Dados em https://revistapesquisa.fapesp.br/2020/05/19/maes-na-quarentena/ 4 - A conquista do grupo de trabalho Mulheres na ciência que representou a inclusão da licença maternidade para pontuação em concursos é um apontamento para este caminho de mudança: http://www.uff.br/?q=noticias/26-02-2019/mulheres-maes-e-pesquisadoras-edital-cientifico-da-uff-pontua-docentes-que Referências: CASTRO, Bárbara; CHAGURI, Mariana. Um tempo só para si: gênero, pandemia e uma política científica feminista. Blog DADOS, 2020 [published 22 May 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/pandemia-cientifica-feminista/ CANDIDO, Marcia Rangel; CAMPOS, Luiz Augusto. Pandemia reduz submissões de artigos acadêmicos assinados por mulheres, Blog DADOS, 2020 [published 14 May 2020]. Available from: http://dados.iesp.uerj.br/pandemia-reduz-submissoes-de-mulheres/ https://revistapesquisa.fapesp.br/2020/05/19/maes-na-quarentena/ https://www.huffpostbrasil.com/entry/maes-mercado trabalho_br_5cd5eff2e4b054da4e89773b http://www.uff.br/?q=noticias/26-02-2019/mulheres-maes-e-pesquisadoras-edital-cientifico-da-uff-pontua-docentes-que https://www.parentinscience.com/
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